sábado, 13 de setembro de 2008

Ensaio sobre a loucura

Da série, Crônicas do Cotidiano

Testemunhei o rompimento da linha tênue que separa a lucidez da insanidade.

Viajava de ônibus, em uma sexta-feira especialmente difícil, imersa em pensamentos confusos, ora otimistas, ora mesquinhos, dosando momentos de crença plena, com outros de total desesperança. Uma sexta-feira típica, quando o cansaço invade, quando alguns planos naufragam, quando a pequenês da vida diária se agiganta e sufoca. Um daqueles dias em que ligamos o piloto automático e tentamos sobreviver.

Uma senhora entrou no ônibus, fico me perguntando quantas senhoras existem neste mundo que entram em ônibus em momentos de total desatino e escolhem como alvo da sua insensatez um passageiro que viaja imerso nos próprios dramas, exercitando o egoismo humano ("minha dor é sempre maior que a sua"). Me pergunto ainda o quanto a vida já sufucou criaturas assim, o quanto já foi tirado delas, para que de uma hora para outra, a fronteira do delírio se expanda e ultrapasse o limite da realidade. É a última gota que transborda a represa.

A senhora, mais ou menos 60 anos, entrou resmungando imprecações consigo mesma. A princípio inaudíveis, cada vez em volume mais alto, até tornarem-se um grito, a crueza de uma vida à qual o destino não fez concessões, jogada na cara dos passageiros, na minha cara. Observo, lamento e penso se também posso envelhecer assim, se algum daqueles passageiros que olham a mulher enlouquecida também podem, de uma hora para outra, romper a represa e vazar incongruências para todos os lados.

Muito provavelmente não. Conhecer a extensão das próprias dores é um passo para salvaguardar a mente do delírio sem volta. Conhecer a extensão da dor do outro, mesmo que sem maiores detalhes do contexto, é um exercício de auto-preservação. "Há sempre situações piores que a nossa", diz minha mãe.

Aquela pobre mulher, que expôs suas feridas berrando desatinos em um ônibus, à vista de tantas testemunhas, perdeu os rumos de si mesma, naufragou num mar que deve ter se formado há muito tempo, um caldo que cozinhou em fogo lento até gerar um monstro que tinha as feições dela, vestia suas roupas, mas com certeza não era aquela mulher. Sua essência, a última gota que restou, deve estar soterrada sob camadas profundas que nenhum anti-depressivo consegue invadir, até porque, anti-depressivos anestesiam, aprisionam o monstro, mas não libertam o ser.

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