sábado, 4 de outubro de 2008
Vão construir 19 torres bem aqui!
Foto de: Ladyamnesia / Vista da minha janela para o futuro Horto Bela Vista
Outdoors, estrelas globais sorridentes e caminhões transportando material de construção anunciam o mega empreendimento Horto Bela Vista, numa área remanescente (?) de mata, na subida da Ladeira do Cabula. Lembrei do professor Cid Teixeira e das suas histórias sobre as laranjas das chácaras do Cabula. Na minha infância, ainda havia uma dessas chácaras. Quando passava por ela, tinha a sensação de que, se atravessasse o portão gradeado ou pulasse o muro, que nem era tão alto, entraria no reino das fadas. Não moro mais no Cabula, embora o bairro onde eu vivo atualmente, também tenha seu quinhão de especulação imobiliária. Em frente ao meu modesto prédio de três andares, uma torre de 17 pavimentos sobe impávida. A bem da verdade, não subiu ainda, mas a demolição da casa colossal, em terreno de cinco mil metros quadrados, que vai abrigar o novíssimo edifício, anuncia para a vizinhança que a Vila Laura já não é mais a mesma. Outras quatro ou cinco ruas do bairro também vão ganhar seus espigões. Mas da minha janela, não serão as caras sorridentes dos meus vizinhos classe-média-alta que verei todas as manhãs. Da minha janela eu vejo a ladeira do Cabula. Numa ironia do destino, vim morar no bairro que fica do outro lado do vale formado pela Rótula do Abacaxi, que como o nome já diz, não é qualquer um que descasca. De um lado do vale, a ladeira do Cabula e a reminescência de mata e das antigas chácaras de laranjas doces. Do lado de cá, o meu lado, a Vila Laura que já foi fazenda, virou bairro pontilhado de casas com jardins vistosos e edifícios pequenos com playgrounds frescos; e, agora, deve se transformar na nova coqueluche do "bem morar" da capital. A ironia é porque, nostálgica, suspiro aqui e outro ali, vejo a ladeira que me conduz a um período da infância que é bem gostoso de lembrar. O que me intriga não é o avanço das construções. O mundo é populoso e cada diz nasce mais gente. As pessoas querem morar, embora boa parte das que conheço não tenham cacife pra morar no Horto Bela Vista. O progresso é necessário (será mesmo?) e coisa e tal... Nada contra a tecnologia, olha eu aqui escrevendo minhas lembranças num blog, nada contra o conforto, bem que meu quarto podia ser maior e ter uma varanda com rede para as tardes de leitura. Mas o meu questionamento é bem simples: fala-se no horto, nos seus 19 edifícios arranha-céu, no shopping-center e nas torres empresariais que vão fechar o cerco moradia-trabalho-e-lazer, tudo no mesmo espaço. Mas não se fala em planejamento, infra-estrutura urbana, reordenamento do tráfego, melhoria das condições de vida da população paupérrima que vive no entorno. Enfim, não se escreve uma linha sobre como a Rótula vai se tornar menos Abacaxi e mais condizente com o mega-projeto ambicioso ladeira do Cabula acima! Como diria meu filho de 11 anos, "é uma incoerência". Sem falar que, José Saramago, que é cada dia mais mago pra mim, previu o advento dos complexos habitacionais-residenciais-diversãogarantida quando escreveu o primoroso A Caverna. O livro é ambientado numa dessas maravilhas da engenharia moderna e seus moradores-trabalhadores-visitantes vivem confinados no sonho do "tudo ao alcance da sua mão" e nem se dão conta de que, tal qual os habitantes da caverna de Platão, o que vêem à sua frente é um mero simulacro de realidade, sombras projetadas na parede. A vida real vai continuar para além dos muros do paradisíaco Horto Bela Vista, espremida e borbulhante na Rótula do Abacaxi.
Foto de: Ladyamnesia / A ladeira que não leva mais para as chácaras do Cabula
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