domingo, 7 de dezembro de 2008

Conversa estranha na calada da noite

Da série, minhas pequenas aventuras do viver

Aconteceu há quase 12 anos. Era aluna da UFBA e no meu tempo, as aulas espalhavam-se ao longo do dia: duas de manhã, uma terceira no meio da tarde, mais duas à noite. Não sei que malabarismos éramos capazes de fazer para estudar e trabalhar, mas alguns estudantes conseguiam. Devo ter perdido os poderes mágicos que me permitiam controlar o tempo, porque nunca mais na vida consegui ser tão multitarefas quanto na época da faculdade. A aula naquela noite estava prevista para terminar às 21h, mas o professor era daqueles apaixonados pela disciplina e os alunos, ávidos por aprender. A aula terminou às 22h30. Nas imediações do campus do Canela não havia ônibus que me levasse para casa. O jeito era andar até o Forte de São Pedro e esperar no ponto próximo à descida da ladeira da Contorno. Para quem não é de Salvador, meus parcos conhecimentos geográficos não permitem descrição mais detalhada. Basta que saibam que o lugar era deserto, muito deserto. Era um tempo na minha vida em que faltava dinheiro para táxi. Até porque, tinha de sobrar para fraldas. Estava no sétimo mês de gravidez, no penúltimo semestre do curso de jornalismo. Meu salário de estagiária em uma empresa de assessoria de comunicação não permitia luxo. Encarei o ponto de ônibus deserto com desconfiança. As muralhas negras do Forte de São Pedro pareciam saídas de um filme do expressionismo alemão. Pensei que daria de cara com Nosferatus, mas o que aconteceu foi um pouco mais surreal e perfeitamente possível, dentro da realidade de uma cidade grande, depois das 22h. Um homem se aproximou de mim, parou na minha frente e disse: "eu ía assaltar a senhora, mas eu não assalto mulher grávida, porque ela pode levar um susto e perder a criança". Eu não sabia se batia no ladrão e gritava "seu... você já me deu um susto", ou se corria. Não bati no homem e também não corri, porque a barriga não deixaria mesmo que eu tentasse. Respirei fundo e respondi: "olha moço, eu acabo de sair da aula e só tenho aqui um passe estudantil pra ir pra casa. Aqui tem minha mochila, se o senhor quiser olhar, pode olhar, mas só tem dois livros que peguei na biblioteca da faculdade, um caderno e um estojo de lápis. Repare que não uso bolsa, nem tenho carteira. Se o senhor levar meu passe eu vou ter de ir para casa à pé, mas com essa barrigona vai ser meio complicado porque eu moro longe, no subúrbio". Essa parte do subúrbio era mentira, melhor dizendo, meia-verdade. Nasci e passei metade da infância na periferia de Salvador, meu pai ainda vivia no subúrbio, mas eu já morava em um bairro central naquela época. Achei que precisava fazer um drama e convencer o ladrão de que eu não era bom negócio. Deu certo, o assaltante ficou com pena. Disse que ficaria ali me fazendo companhia até o meu ônibus passar. "É para evitar que algum malandro venha fazer mal pra senhora, eu tenho um respeito muito grande por mulher grávida". Eu não sabia se ria da situação exdrúxula em que havia me metido ou se chorava, porque meu ônibus ía passar e o ladrão veria que eu menti. Meu medo era ficar marcada e ele desconsiderar a barriga e me assaltar numa próxima saída da aula. Continuamos batendo papo. O ladrão falava e eu sacudia a cabeça, concordando com tudo o que ele dizia. Não tirava o olho da esquina de onde viria o ônibus e não sabia se rezava para o coletivo chegar logo ou não chegar. Uma coisa eu pedia a Deus, "não mande nenhum ônibus de bairros suburbanos. O senhor tem mãe!". Devia ser mais um daqueles dias em que Deus está de ouvidos desentupidos ou então no silêncio da noite, só tinha mesmo aquela quase-mãe de 22 anos ali parada no meio da rua, tentando lembrar orações da infância ("santo anjo do senhor...") e o pai de todos ficou comovido. Quase meia-hora depois, enquanto eu ouvia o ladrão monologar sobre a dura vida de assaltante, um casal se aproximou para também esperar um coletivo. Logo em seguida, apareceu mais um homem. O ladrão então bateu no meu ombro e disse: "agora a senhora tem companhia demais, já vou viu. Avise para o pai desse moleque que ele tem obrigação de vir buscar a mulher na escola". Achei desnecessário explicar ao ladrão que tratava-se de uma produção independente.

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