segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Os versos satânicos – digestão


“Para nascer de novo, é preciso morrer primeiro”.

Gibreel Farishta e Saladim Chamcha despencaram 30 mil pés sobre Londres. A metáfora usada por Salman Rushdie para descrever o estranhamento desses dois imigrantes indianos na Londres da era Tatcher pode servir como alegoria para qualquer situação em que o ser humano se sinta inadequado, estranho, em eterna adaptação. Os dois homens, hindus-muçulmanos (esse é o livro que decretou a sentença de morte de Salman Rushdie diante dos fundamentalistas islâmicos) sobrevivem a explosão de um avião atacado por terroristas. Durante a queda das nuvens, sofrem o que o autor chama de metamorfose. Gibreel, o arcanjo, é um ator de sucesso, faz filmes teológicos e já interpretou um sem número de deuses do intrincado panteão hindu. Saladim, também ator, é um homem atormentado por demônios interiores, complexo de Édipo mal resolvido, relação tensa com o pai, frustração na carreira, inadequação com a própria cor da pele, escura. Gibreel, ex-menino pobre das ruas de Bombaim, é a estrela histriônica e cheia de caprichos, mas que tem tanta luz dentro de si que recebe o perdão para todos os seus pecados antes mesmo de cometê-los. Essa intensidade o cega. Ofuscado pelo próprio ego, consumido pela paixão por si mesmo, pela humanidade, por Alleluia Cone, a alpinista que conquistou o Everest, embarca nos próprios devaneios, julga-se o mensageiro de Deus, o braço esquerdo da ira divina, o Arcanjo Gabriel encarnado. Perde o juízo e começa a viver a fantasia de sua infância, quando a mãe o chamava de “farishta” (anjo). Saladim, o menino rico de Bombaim, filho de um próspero fabricante de fertilizantes, rejeita a casa paterna, a cultura de seus pais, do país de origem. Ele quer ser inglês, falar, vestir-se, ter a cor dos britânicos. Também vive dentro de um sonho e tarde demais descobre que a velha Inglaterra das novelas de cavalaria não existe para além do cancioneiro dos poetas. Contar todas as mirabolantes reviravoltas do destino desses dois homens – um transmutado em anjo, o outro em demônio, é estragar o prazer, o susto, a confusão, a necessidade de digerir cada linha de Os Versos Satânicos. Basta dizer que é uma leitura fundamental para entender o eterno conflito oriente-ocidente. Para ter o panorama completo que Rushdie deseja traçar não somente da Índia, mas de como a cultura molda o ser humano, na mesma medida em que é consolidada por ele, é preciso ir mais fundo no universo rushdiano e ler também O chão que ela pisa. Os dois livros se completam, embora tragam personagens e situações diversas. A sensação ao concluir as duas leituras é de ignorância completa. Senti-me incapaz, logo de cara, de dizer se entendi o recado. Fiquei confusa, sem saber se Rushdie queria mesmo dar um recado ou se os dois livros não são apenas a sua catarse, a sua forma de exorcizar os demônios da herança anglo-indiana. Se tudo não passa da narrativa de um homem em conflito entre oriente-ocidente, mas que tem senso critico suficiente para olhar os dois mundos sem fazer concessões, sem piedade. É o melhor e o pior dos dois universos e é tão próximo da vida de qualquer pessoa, independente de ter nascido em Bombaim, Londres, ou em Salvador, que é difícil não traçar paralelos. Não vou dizer como a história acaba ou o que ela revela, porque digestão é algo muito particular, no ritmo próprio de cada um. Duas pessoas não digerem a mesma informação de maneira semelhante. Limito-me a dizer que o ciúme é a ruína do celestial Gibreel e o amor pode redimir ou não o satânico Saladim. No fim, anjos parecem criaturas atormentadas e demônios, demasiadamente humanos.

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