sexta-feira, 17 de outubro de 2008

"Muito carro para pouca cidade"

Da série, crônicas do cotidiano

Seu Francisco está na praça há pouco mais de 30 anos, quase o tempo de vida da passageira que vai acomodada no banco de trás do táxi, comendo chocolates ferrero rocher. "Vai dar tempo de chegar em Ondina até 19h, seu Francisco?". O taxista consulta o relório, são 18h45, olha o tráfego engarrafado da avenida ACM, suspira e responde: "se a gente conseguir sair daqui desse bolo, vai dar tempo sim senhora". O problema, continua Seu Francisco, é que tem muito carro e pouca cidade em Salvador. A moça concorda, mastigando um último pedaço de castanha, triturada e escondida entre as camadas de creme de avelã do ferrero rocher. Seu Francisco, dois filhos, "formados viu minha senhora, um é analista de sistema e a menina é enfermeira", 56 anos de idade, "nascido e criado na cidade baixa", casado com a mesma mulher há 39 anos, continua explicando os problemas do trânsito da terceira capital do país. "A senhora tá vendo essa sinaleira (na saída do shopping iguatemi, imediações do edifício Capemi) - essa sinaleira é uma burrice minha senhora, eles botaram uma sinaleira na saída de um cruzamento, resultado, fecha lá, engarrafa aqui. Tinha era de botar uma passarela nessa avenida e eliminar a sinaleira". É o ponto de vista do taxista, trinta e tantos anos na praça, cansado da guerra diária do trânsito. A moça dos chocolates divaga, imagina a cidade coalhada de passarelas, todas estendidas feito bandeirolas ou roupas coloridas ao vento, pedestres minúsculos feito formigas indo e vindo... Embaixo, pista livre para a disputa pessoal dos motoristas. Ganha quem tiver mais pressa, quem for mais hábil, quem tiver menos medo da morte. "Chegamos senhora!". São 19h05, Seu Francisco errou a previsão por pouco. "O total da corrida é R$ 17,75". Nota de R$ 20,00. Seu Francisco cata moedas. "Arredonda logo para R$ 18,00, Seu Francisco". Dois reais de troco, a passagem do ônibus de amanhã cedo. "Deus lhe acompanhe minha filha". Amém, Seu Francisco. E ao senhor não desampare.

3 comentários:

Anônimo disse...

sabe quando você lê um texto e pensa: "poxa, eu poderia ter escrito isso"... engraçado, mas foi a sensação que eu tive ao ler seu texto, que podia ser um texto meu... fiquei feliz, porque eu adorei o texto!!!! hahahahaha...
Alane

Andreia Santana disse...

Acontece, tudo o que Saramago escreve eu gostaria de ter o poder de escrever, rsrsrsrs

Unknown disse...

É bem por aí mesmo...