quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Menina revolucionária

Da série, histórias que a minha mãe conta

Década de 60, depois do golpe. Cenário: hospital das clínicas, como na época era conhecido o Hupes (Hospital Universitário Professor Edgar Santos). Mais um dia de plantão silencioso. Uma auxiliar de enfermagem de vinte e poucos anos percorre as enfermarias, checa a temperatura dos pacientes, distribui medicação. Do térreo, vem o som de um rebuliço no refeitório. As notícias chegam de elevador. Os militares invadiram o hospital, estão caçando médicos contrários ao regime. Os funcionários, surpreendidos em pleno almoço, foram todos rendidos, estão de costas para a parede, mãos na cabeça, mãos que revistam percorrem seus corpos, enfiam-se nos bolsos das fardas à cata de papéis proibidos. Um destacamento está a caminho da enfermaria. Entra um médico, jovem, cheio de idéias incendiárias, pede ajuda para a auxiliar de enfermagem, uma moça baixinha, de gestos suaves, fala delicada, mas com uma vontade de aço, que não dobra, não verga. Ela aponta um leito vazio "deite aí doutor", cobre o suposto paciente dos pés à cabeça, continua seu tranqüilo vai-e-vem pela enfermaria. O destacamento chega, o barulho de botas ressoa no corredor. "Quem é esse aí na cama". A jovem atendente de enfermagem responde tranqüilamente, "um paciente em recuperação". Um dos soldados diz que precisa revistar a enfermaria, a atendente revida que ele pode revistar, mas não pode incomodar os doentes, que aquela ala é para doenças terminais, pacientes em estado gravíssimo e que se alguma daquelas pessoas morrer, as famílias certamente vão baixar no quartel. A voz dela não treme, o canto do olho não pisca. O soldado dá meia volta, continua sua busca por outros cantos do hospital. Barra-limpa, o médico agradece. Mas ainda tem um problema, seus livros, seus papéis, nada pode ser encontrado. "Não vai ser encontrado", diz a moça. Naquela noite, ao sair do plantão, a enfermeira leva para casa, além da bolsa, um pacote embrulhado como quem acaba de sair do supermercado. Pega o ônibus, viaja tranqüila, sem medo de uma blitz. Os livros estão protegidos e assim permaneceram por anos, até que era seguro de novo para o seu dono reavê-los.

3 comentários:

turbina de ideias disse...

Esta história dar um roteiro cinematográfico, Andreia.

Andreia Santana disse...

Minha mãe rende um roteiro e tanto Beto, rsrsrs

nobicodourubu disse...

não só sua mãe renderia roteiros e tanto... criatura.